segunda-feira, 20 de agosto de 2012

TRABALHO: A Construção da Ética e da Política

1 - Se a vida humana depende do trabalho, e este é visto como verdadeira tortura a conclusão é que o ser humano está condenado à infelicidade.

Esta afirmativa é realmente verdadeira? Vejamos. Pelo trabalho humano a natureza é transformada e criamos cultura, história e as instituições (família, o Estado, a ciência, etc.), criamos a ética e a política.  O ser humano se faz pelo trabalho, construindo sua subjetividade. Desenvolve a imaginação, aprende a se relacionar, a enfrentar conflitos, a exigir de si mesmo a superação de dificuldades. Enfim, com o trabalho ninguém permanece o mesmo, porque ele enriquece a percepção do mundo e de si próprio.

Como condição de humanização, o trabalho liberta, ao viabilizar projetos e concretizar sonhos. Se em um primeiro momento a natureza apresenta-se como destino, o trabalho será a possibilidade da superação dos determinismos.

2- Nesse sentido, a liberdade não é dada, mas resulta da ação humana transformadora. Nem sempre, porém, prevalece essa concepção positiva, sobretudo quando as pessoas são obrigadas a viver do trabalho alienado, que resulta de relações de exploração. Podemos indagar: o trabalho é necessariamente tortura ou pode ser emancipação? Esta foi uma das questões mais importantes tratadas pelo filósofo Karl Marx.
Nas sociedades tribais, as pessoas dividem tarefas de acordo com sua força e capacidade. Como a divisão das tarefas se baseia na cooperação e na complementação e não na exploração, tanto a terra como os frutos do trabalho pertencem a toda a comunidade. Por que mudaria esse estado de coisas? Para Jean-Jacques Rousseau, filósofo do século XVIII, a desigualdade surgiu com a propriedade privada da terra. Nesse momento, abriu-se o caminho para a divisão social, as relações de dominação e a desigual apropriação dos frutos do trabalho. (...)

3-Até a Idade Média, a riqueza se restringia à posse de terras, mas ao final desse período e durante a Idade Moderna, as atividades mercantis e manufatureiras desenvolveram-se a tal ponto que provocaram a expansão das fábricas, o que culminou com a Revolução Industrial no século XVIII. Esses acontecimentos decorreram da ascensão da burguesia enriquecida, que valorizava a técnica e o trabalho, uma vez que constituía um segmento originado dos antigos servos libertos e que tornou livres as cidades antes controladas por senhores feudais. (...)
Enquanto na Idade Média o saber contemplativo era privilegiado em detrimento da prática, no Renascimento e na Idade Moderna deu-se a valorização da técnica, da experimentação, do conhecimento alcançado por meio da prática. No campo político e econômico, estavam sendo elaborados os princípios do liberalismo. Quais as consequências das ideias liberais para o trabalho?

4 - Superando as relações de dominação entre senhores e servos, foi instituído o contrato de trabalho entre indivíduos livres, o que significa o reconhecimento do trabalhador no campo jurídico. Uma das novidades das ideias liberais é a valorização do trabalho. (...) No século XIX, o filósofo alemão Hegel faz uma leitura otimista da função do trabalho na célebre passagem "do senhor e do escravo'', descrita na Fenomenologia do espírito (capítulo IV-A): dois indivíduos lutam entre si e um deles sai vencedor, podendo matar o vencido. Este, no entanto, prefere submeter-se, para poupar a própria vida. A fim de ser reconhecido como senhor, o vencedor conserva o outro como servo. O servo submetido tudo faz para o senhor, mas com o tempo o senhor descobre que não sabe fazer mais nada, porque, entre ele e o mundo, colocou o servo, e é ele que domina a natureza. Desse modo, o servo recupera a liberdade, porque o trabalho se torna a expressão da liberdade reconquistada.
No século XIX, o resplendor do progresso alcançado pela Revolução Industrial não oculta a questão social. A exploração dos operários fica explícita em extensas jornadas de trabalho em péssimas instalações, salários baixos, arregimentação de crianças e mulheres como mão de obra mais barata. Esse estado de coisas desencadeou os movimentos socialistas e anarquistas. Nesse panorama, Karl Marx (1818-1883) retoma a temática hegeliana ao ver o trabalho como condição de liberdade.

5 - No entanto, Marx nega que a nova ordem econômica do capitalismo fosse capaz de possibilitar a igualdade entre as partes, porque o trabalhador perde mais do que ganha, já que produz para outro: a posse do produto lhe escapa. Nesse caso, é ele próprio que deixa de ser o centro de si mesmo. Não escolhe o salário - embora isso lhe apareça ficticiamente como o resultado de um contrato livre - , não escolhe o horário nem o ritmo de trabalho e é comandado de fora, por forças que não mais controla. O resultado é a pessoa tornar-se "estranha", "alheia" a si própria: é o fenômeno da alienação.

6 - Para Marx, que analisou esse conceito básico, a alienação não é puramente teórica, porque se manifesta na vida real quando o produto do trabalho deixa de pertencer a quem o produziu. Isso ocorre porque na economia capitalista prevalece a lógica do mercado, em que tudo tem um preço, ou seja, ao vender sua força de trabalho mediante salário, o operário também se transforma em mercadoria. Ocorre então o que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificação do trabalhador. Vejamos o que significam esses conceitos.

• O fetichismo é o processo pelo qual a mercadoria,um ser inanimado, adquire "vida" porque os valores de troca tornam-se superiores aos valores de uso e passam a determinar as relações humanas, ao contrário do que deveria acontecer. Desse modo, a relação entre produtores não se faz entre eles próprios, mas entre os produtos do seu trabalho. Por exemplo, não são relações entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e mesa, que são equiparados conforme uma medida comum de valor.
Nas práticas míticas, "feitiço" ou "fetiche" significa objeto a que se atribui poder sobrenatural; em psicologia, fetichismo é a perversão na qual a satisfação sexual depende da visão ou do contato com partes específicas do corpo ou objetos (pés, cabelos, sapatos, roupas íntimas etc.) e não com a pessoa inteira. A semelhança entre o sentido mítico, o psicológico e o fetichismo da mercadoria é que, nos três casos, objetos inertes, sem vida, ou partes de um todo tornam-se "animados", "humanizados".

• A reificação (do latim res, "coisa'') é a transformação dos seres humanos em coisas. Em consequência, a "humanização" da mercadoria leva à desumanização da pessoa, à sua coisificação, isto é, o indivíduo é transformado em mercadoria. A alienação não se aplica apenas à produção do trabalhador, mas também às formas do consumo, como veremos mais adiante.

7 - Outros pensadores investigaram as mudanças decorrentes do capitalismo e do nascimento das fábricas, analisando-as sob outro ângulo, o da instauração da era da disciplina. Segundo Michel Foucault, um novo tipo de disciplina facilitou a dominação mediante a "docilização" do corpo. Foi isso que aconteceu quando os proprietários das fábricas, na busca de maior produtividade, implantaram sistemas de "racionalização'', que, em última análise, significam economizar tempo, transformando-o em mercadoria.
A exploração e a alienação da produção estendem-se para a esfera do consumo. Ao prosperarem materialmente, os trabalhadores compartilham do "espírito do capitalismo'', atraídos pelas promessas da sociedade de consumo. Os centros de compras se transformam em "catedrais do consumo", verdadeiros templos cujo apelo constante às novidades torna tudo descartável e rapidamente obsoleto. E com as facilidades da internet já se pode comprar até sem sair de casa. Vendem-se coisas, serviços, ideias. Isso não significa, porém, que todo consumo seja alienado, porque o consumo pode ser consciente e criativo.

8 - O consumo alienado degenera em consumismo quando se toma um fim em si e não um meio, provocando desejos nunca satisfeitos, um sempre querer mais, um poço sem fundo. A ânsia do consumo perde toda relação com as necessidades reais, o que leva as pessoas a gastar mais do que precisam e, às vezes, mais do que têm. O comércio facilita a realização dos desejos ao possibilitar o parcelamento das compras, promover liquidações e ofertas de ocasião, estimular o uso de cartões de crédito, de compras pela internet. As mercadorias são rapidamente postas "fora de moda" porque seu design se tomou antiquado ou porque um novo produto se mostrou "indispensável", seja televisão, geladeira, celular ou carro.

9 - Sobre a questão da produção e do consumo, debruçaram-se inúmeros filósofos, entre os quais os pensadores da Escola de Frankfurt, movimento que surgiu na década de 1930 na Alemanha. Para os frankfurtianos, chegamos ao impasse que nos deixa perplexos diante da técnica – apresentada de início como libertadora - e que pode se mostrar, afinal, artífice de uma ordem tecnocrática opressora. A técnica aplicada ao trabalho tem provocado a alienação do trabalhador e o esgotamento dos recursos naturais. De fato, a exaltação do progresso indiscriminado não tem respeitado o que hoje chamamos de desenvolvimento sustentável. Ao submeter-se passivamente aos critérios de produtividade e desempenho no mundo competitivo do mercado, o indivíduo perde muito do prazer de sua atividade ao ser regido por princípios aparentemente "racionais".

10-Por isso, Max Horkheimer acrescenta que "a doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de dominar a natureza''. E mais, que "a história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem". De que "razão" fala o filósofo? Trata-se da razão instrumental, que serve para qualquer fim, sem averiguar se é bom ou mau. Na sociedade capitalista, os interesses definem-se pelo critério da eficácia,uma vez que a organização das forças produtivas visa a atingir níveis sempre mais altos de produtividade e de competitividade. Onde a técnica é o principal, a pessoa deixa de ser fim para se tornar meio de qualquer coisa que se acha fora dela, além de que a relação do ser humano com a natureza passa a ser de domínio e não de harmonia. Na sociedade da total administração, segundo a expressão de Max Horkheimer e Theodor Adorno, os conflitos são dissimulados e a oposição desaparece. Herbert Marcuse chama unidimensionalidade à perda da dimensão crítica, pela qual o trabalhador não percebe a exploração de que é vítima. O filósofo alerta para a distinção entre necessidades vitais e falsas necessidades, para que a satisfação dos indivíduos não se reduza a uma "euforia na infelicidade".

11 - No início do século XX. foram marcantes as iniciativas de produção em série nas linhas de montagem, com a consequente estimulação do consumo de massa, apesar dos efeitos alienantes no campo do trabalho e do consumo. Nada se compara, porém, ao impacto causado no final do milênio com a implantação da tecnologia avançada da automação, bem como da comunicação em tempo real possibilitada pela informática nas fábricas, nos escritórios e no campo. A produção globalizada na época do hiperconsumo nos obriga a rever as críticas aos antigos modelos de alienação no trabalho e no consumo. Entretanto, no brilho da diversificação das tarefas e das ofertas múltiplas de compras, estaríamos livres de outros modos de manipulação da nossa consciência crítica e portanto de nossas escolhas? Tudo isso aumenta nossa responsabilidade, tanto no plano pessoal como no coletivo. Apesar dos benefícios alcançados pela nossa civilização, há um grande número de pessoas excluídas do sistema, e o desequilíbrio ecológico agrava-se a cada dia. O importante é verificar, a todo momento, em que medida as atividades do trabalho, consumo e lazer estão a serviço da humanização e da sustentabilidade do planeta e quando se desviam desses objetivos principais.

Texto base – Trabalho, alienação e consumo. Livro Filosofando – de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins.  Resenha – autoria Frederico Drummond – professor de filosofia.

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